terça-feira, 1 de setembro de 2020

A (IN)JUSTIÇA DA REFORMA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA SOBRE O CONSUMO

Em tempos nos quais renova-se, com pressa e fervor, o debate sobre uma reforma tributária sobre o consumo no Brasil, objeto das PECs 45/2019 e 110/2019, não custa lembrar que o tema não pode ser enfrentado com base em premissas puramente econômicas.

Toda mudança de governo acaba por encetar uma transformação fiscal. Imposto não é questão puramente técnica, mas político-filosófica, a escolha de como serão financiados os direitos dos cidadãos.

Nessa vertente, é preciso ter em conta alguns aspectos fundamentais que se prestam à atual discussão do tema, quais sejam: primeiro, que a tributação tem um papel relevante na distribuição de riquezas na sociedade, pois representa o instrumento de financiamento dos direitos fundamentais; é o que se paga para a realização dos valores da igualdade e da liberdade.

Segundo, não se deve demonizar a política, ou incentivar uma visão pejorativa do Estado e do poder, porque isso afasta, como bem observou Merquior, tanto as massas quanto as elites, de uma apreciação equilibrada do amplo potencial de utilização justa e beneficente desse mesmo poder. O poder é uma necessidade social.

Somos seres políticos inseridos numa sociedade, cujos acordos possibilitam vivermos, e onde o Estado é fundamental para garantir os nossos direitos e a paz social. O debate, portanto, deve ser participativo e levar em conta a necessidade do enfrentamento de questões de justiça; a tributação é a escolha prima.

Justiça é igualdade, mas apenas para aqueles iguais entre si, em conformidade com o clássico ensinamento de Aristóteles. Julgam mal aqueles que omitem a qualificação das pessoas a que elas se aplicam, pois julgam tomando-se a si mesmos e, quando se julga em causa própria, seguramente se julga mal.

Johnn Rawls, bem mais adiante, reconheceu que a tributação pode "corrigir gradual e continuamente a distribuição de riqueza e impedir a concentração de poder que prejudiquem o valor equitativo da liberdade política e da igualdade equitativa de oportunidade" , pois quando a desigualdade de riqueza atinge certo limite, as próprias instituições e as mesmas oportunidades de educação e cultura para pessoas de motivação semelhante são ameaçadas.

Nem mesmo o liberalismo econômico de Adam Smith é um princípio dogmático não intervencionista, como faz crer a vulgarização da ideologia liberal, pois para ele o Estado tem o seu papel na seara econômica, qual seja o de promover a defesa externa, a justiça, as obras públicas e a educação, que estão vinculadas à proteção da propriedade e riqueza dos capitalistas, dando condições à expansão do comércio e à formação da força de trabalho. No dever de educação, Smith preocupa-se com que o Estado ofereça formação moral aos cidadãos, ampliando seus ideais além das exigências imediatas do mercado de trabalho.

A alta carga tributária no Brasil não é novidade, o que tem relação com as amplas atividades do Estado. Os tributos devem ser compreendidos como componentes desse sistema. O ponto crítico, entretanto, é a sua não concentração em tributos diretos e progressivos, o que acaba por vulnerar a justiça tributária.

Segundo levantamento lançado pela Receita Federal em 2020, com relação à carga tributária de 2018, constata-se que, quando se compara a tributação por base de incidência, observa-se que para a base renda o Brasil tributa menos do que a média dos países da OCDE, enquanto que para a base bens e serviços tributa, em média, mais.

Como se vê, a base da arrecadação no Brasil é centrada no consumo. Não obstante ser uma escolha eficiente no aspecto da arrecadação, ela promove um aumento da desigualdade, dado o caráter regressivo desse tipo de tributação.

Contudo, ao invés de uma redução de impostos incidentes sobre o consumo, dois projetos em trâmite no Congresso Nacional (PEC 45/2019 e PEC 110/2019), fundamentados na unificação desses tributos, prevêem a convivência do novo imposto que instituem, sobre bens e serviços, com os tributos vigentes (ISS, ICMS, PIS, Cofins, IPI, IOF, CSLL, Pasep, Salário-Educação, Cide-Combustíveis), por muitos anos, aumentando obviamente a carga tributária e o custo de conformidade.

Outra vertente das mencionadas reformas unificadoras é que a conjunção proposta solapa o pacto federativo, violando a autonomia financeira e administrativa dos entes, especialmente dos municípios. Autonomia esta que é uma "garantia institucional produzida constitucionalmente pelo sistema federativo em proveito das comunidades".

Alterações de competência tributária não podem ser realizadas diante da Constituição rígida que possuímos. Diferentemente, modificações relativas a obrigações acessórias, redução da carga tributária sobre o consumo e/ou o seu aprimoramento, ou mesmo o aumento da tributação da renda podem ser realizadas, inclusive em nível infraconstitucional.

O aperfeiçoamento da tributação do consumo pode ser implementado sem violar o pacto federativo e com o intuito realmente simplificador, a exemplo da junção dos atuais 27 ICMS num ICMS Nacional e dos 5.570 ISSs num ISS Nacional, evitando a guerra fiscal; com o melhoramento do IPI como imposto seletivo, com a unificação de PIS e Cofins numa Contribuição sobre o Valor Adicionado (CVA) federal e com a previsão da desoneração sobre a folha de pagamento, nos termos propostos pelo "Simplifica Já".

Há focos reveladores dos problemas da política fiscal no Brasil como a isenção do Imposto de Renda dos lucros e dividendos distribuídos aos acionistas de empresas, o que representa que parcela da população que mais concentra renda é a menos tributada.

Essa referência adotada no país deita origem num paradigma em voga nos anos de 1980 e de 1990 fixado na tese de que, para a não introdução de distorções no sistema econômico, a política tributária deveria se abster de objetivos distributivos, transferindo-se ao gasto público essa missão da política fiscal. Contudo, esse modelo até hoje adotado no Brasil, requer revisão diante do esgotamento do gasto redistributivo.

O desenvolvimento do Estado fiscal ao longo do século XX corresponde em essência à constituição de um estado social, como destaca Piketty, evidenciando que a progressividade fiscal no topo da hierarquia das rendas e das heranças é parte dos motivos que contribuíram para uma menor concentração patrimonial de renda no período pós-guerras mundiais (1914-1945), o que se afina, aliás, com o atual contexto pós-pandêmico.

Nos Estados Unidos e na Inglaterra, nos anos de 1940, as alíquotas máximas de IR foram altíssimas, chegando a ultrapassar 90%, o que ensejou uma virada conservadora sob o paradigma de que a progressividade do sistema tributário era um mal a ser eliminado por penalizar aqueles mais capazes e obstaculizar a prosperidade.

Essa reorientação se repetiu no mundo, em diversos países. O Brasil, a partir da década de 1990, passou a aplicar três faixas de tributação com alíquota máxima de 27,5% e isenção de dividendos, depois de possuir 12 faixas e alíquota máxima de pelo menos 50% durante quatro décadas.

Desde então, não houve no país uma preocupação com a redistribuição pela ponta da tributação.

Os tributos são necessários, pois não há propriedade ou mercado sem governo, assim como não há governo sem tributos. Os tributos financiam um sistema jurídico garantidor dos direitos individuais e sociais. Sem impostos nos tornaríamos lobos hobbesianos.

Entretanto, qualquer tentativa de reforma tributária não pode desconsiderar a justiça e nem se afastar do modelo federativo arquitetado constitucionalmente, sobretudo sob a alegação utilitarista da ultracomplexidade do sistema tributário nacional, até porque as mudanças previstas nas PECs referidas gerariam novas distorções, complexidades e possíveis inconstitucionalidades.

O problema é que ainda não houve, no Brasil, nenhuma política efetiva de utilização do potencial redistributivo por meio da tributação, tributando-se verdadeiramente em escala superior aqueles com um potencial contributivo maior. Esse, sim, é um imperativo civilizatório. Não há mágica se quisermos ser menos desiguais.

Fonte: Conjur



Postado por: Palestrante Dr. Marcos Andrade, Advogado com formação nas áreas de Direito Tributário, Direito Previdenciário, Direito Trabalho e Ciências Contábeis, natural da Cidade de São Paulo – SP. Pós-Graduado em Direito Trabalho. Pós-Graduado em Direito Previdenciário, Cursando Doutorado -UMSA-AR, Membro Palestrante do IBRADED – Instituto Brasileiro de Direito e Educação, especialista em Direito Tributário e Holding Patrimonial.

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